quinta-feira, 18 de outubro de 2018

É LÍCITA A PROSTITUIÇÃO?

É LÍCITA A PROSTITUIÇÃO?

CRISTÃO RECENTE (Rio de Janeiro): «Pretende-se hoje em dia legalizar a prostituição, já que parece ser uma praxe inevitável. Dizem que assim se evitariam maiores males. Que pensar a respeito ?»

Antes do mais, convém lembrar o que se entende por «prostituição»: trata-se de relações sexuais entre pessoas não casadas, sendo que a mulher se entrega a troco de pagamento, vendendo o seu próprio corpo, sem que haja nisso amor humano propriamente dito.

Como referem os noticiários, a praxe da prostituição se alastra cada vez mais no mundo inteiro. Em consequência, há quem a queira justificar e apregoe que não se lhe deveriam impor sanções, mas, ao contrário, regulamentá-la e legalizá-la, dando assim plenos direitos de existência às chamadas «casas de tolerância».

Veremos abaixo o que pensa a consciência cristã a respeito, quais as causas e quais os remédios que se poderiam assinalar para tal estado de coisas.

1. Será lícita ?

1. Em primeiro lugar, interessa saber quais os principais argumentos que atualmente se evocam para reconhecer e legalizar a prostituição. Ei-los em resumo:
a)     Trata-se de praxe tão antiga quanto o gênero humano. Inútil é procurar combatê-la. Regulamentando-a, as autoridades ao menos impedirão que piores males se exerçam. Reprimindo-a, fazem que as mulheres honestas sofram o perigo de ser violentadas e que se multipliquem os atos de imoralidade mais degradantes.
b)     Vender o corpo na prostituição não é menos digno do que vender o corpo e suas energias nos empregos penosos' que a vida moderna oferece em troco de «salário mínimo».

À guisa de ilustração, citamos aqui um tópico da imprensa carioca de 19/XI/1962:
«Toda a vida existiu prostituição — 'a mais antiga profissão do mundo' — e toda a vida existirá, enquanto persistirem os absurdos tabus sexuais que regem o funcionamento de todas as sociedades. Adianta prender prostitutas? Claro que não, e todo o mundo alfabetizado sabe disso. Elas serão soltas e voltarão à atividade...

Até hoje, do ponto de vista social, o que Shaw disse sobre a prostituição em 'A Profissão da Senhora Warren", permanece imbatível: por que uma moça bonita e miserável há de vender o seu corpo num trabalho infecto, ganhando salário-mínimo, se pode vendê-lo muito mais caro — e até, em certos casos, com possibilidades de tornar-se capitalista — num trabalho igualmente infecto?»- («última Hora» de 19/XI/1962).

Na mais sóbria das reivindicações, alguns autores reconhecem que ao menos nas pequenas cidades se pode e deve combater a prostituição, ao passo que nos grandes centros de população afirmam que sé torna necessário e oportuno dar-lhe existência legal e a devida organização.

2.     A tais opiniões, por mais válidas que pareçam, a consciência cristã não hesita em opor sua repulsa peremptória. A rejeição da prostituição não depende de fatores de história, cultura, economia,... mas baseia-se na própria natureza do ato sexual humano. Este não é mera função do corpo e da matéria, mas é função de um composto psicossomático ; as funções psíquicas ou da alma têm nesse ato um papel diretivo imprescindível. Ora as funções da alma por excelência são o conhecimento e o amor. Isto quer dizer que a vida sexual do homem é feita para se exercer em estrita dependência do amor. Só o amor total de um jovem a uma jovem ou de um varão a uma mulher justifica a união dos corpos no plano sexual. Essa doação de amor total é firmada por um contrato que se chama «o casamento». É o . casamento que dá estabilidade ao lar, permitindo que se crie um ambiente definido onde a prole — finalidade primária da vida conjugal — poderá ser devidamente educada. Destas considerações se segue que todo tipo de união sexual realizada fora do casamento, qualquer que seja o seu título ou pretexto, é ilícito.

Particularmente grave é a prostituição, pois por esta os seres humanos chegam a equiparar um ato que deveria exprimir seu amor e sua personalidade, a uma mercadoria sujeita às leis da oferta e da procura.

A prostituição, portanto, equivale ao absoluto vilipêndio da personalidade ou da dignidade humana, merecendo assim o repúdio de toda consciência honesta.

3.     A recusa resiste mesmo às duas razões acima referidas, que visam reconhecer direitos à prostituição. Com efeito,

a) dizer que se trata de um mal inveterado na história, mal que não podemos pretender extinguir, mas que é preciso aceitar a fim de evitar maiores males, é dar provas de mentalidade cética, cansada ou decrépita. O mal será sempre mal e deverá ser sempre denunciado como tal, independentemente da opinião ou da praxe dos diversos grupos sociais. O cristão, ao apontar francamente o mal, tem confiança na graça de Deus, ciente de que o Senhor não abandona nenhum dos discípulos que Lhe queiram ser fiéis, não coloca ninguém em situação tal que não possa evitar o pecado. É, pois, com otimismo e esperança que o discípulo de Cristo se insurge contra a prostituição, por mais alastrada que ela esteja no gênero humano.

b) Doutro lado, asseverar que «tanto faz vender-se na prostituição como vender-se num emprego miserável de salário mínimo» é indício de que não se compreende o que é a criatura humana. O trabalho constitui por si mesmo um valor, um enobrecimento da personalidade; o fato de ser ele, em alguns casos, mal remunerado não degrada o próprio trabalho; o operário, pelo fato mesmo de ser operário, poderá conservar-se sempre reto e digno (verdade é que o trabalhador mal remunerado fica sujeito a precárias condições de vida material, o que fàcilmente dá ensejo a tentações, desordens e desvios Por isto deve-se combater a insuficiência de salários. Esta, porém, é um mal que não torna mau o trabalho em si). Ao contrário, a prostituição é por si mesma um mal, que em caso nenhum pode ser reconhecido como bem ou como algo de lícito; viola as leis da natureza humana como tal.

4. Há, porém, quem queira legitimar a prostituição recorrendo ao texto bíblico de Oséias c. 1: o Senhor Deus mandou, sim, ao profeta unir-se à prostituta Gomer; em consequência, esta concebeu três filhos... — Que dizer ?
Evidentemente, como se depreende da leitura completa do. texto, trata-se de uma ação simbólica ou de um ensinamento dado a Israel sob a forma de um quadro cênico; o Senhor o mandou executar precisamente a fim de mostrar ao povo de Israel o que é infidelidade para com Deus ou o pecado : é algo de tão hediondo que deve ser comparado à hediondez da prostituição (a plebe de Israel pecadora era assemelhada à prostituta). — A admoestação, porém, se concluía com estes dizeres do Senhor:

«Obstruirei os caminhos da prostituta, para que não encontre mais as suas veredas; irá ao encalço dos seus amantes, mas não os atingirá; procurá-los-á, mas não os encontrará. Então dirá: 'Voltarei ao meu primeiro marido, pois eu era mais feliz outrora do que hoje'» (Os 1,8s).

Destarte se vê que o texto de Os 1 está longe de fornecer qualquer justificativa para a prostituição.

5. Além dos motivos doutrinários apresentados contra a prostituição, devem-se lembrar as dolorosas consequências decorrentes desse vício:
a) no plano psicológico, apodera-se da mulher prostituta um sentido profundo de frustração e desintegração. De fato, realizar a vida sexual sem amor ou afeto significa mero desgaste, depauperamento não devidamente compensado (não é o dinheiro que pode satisfazer às exigências mais profundas da alma). Quando a criatura humana se limita a viver unicamente segundo as leis da matéria, não pode deixar de se sentir inquieta e sequiosa;
b)     no plano higiênico, doenças várias são contraídas pela prática da prostituição — o que bem se entende, dados os abusos do corpo sobre os quais se baseia esse vício;
c)      no plano social, a prostituição degrada a mulher, reduzindo-a não raro à condição de escrava, pois ela se vende, deixando-se agenciar pelas leis do dinheiro, de tal modo que já se tem falado do «tráfico das mulheres brancas» ;
d)     no plano econômico, a prostituição não deixa de ser causa de miséria material, pois, além de constituir precário ganha-pão para a mulher, é, para os homens, motivo de despesas desregradas: em vez de empregar o seu dinheiro recorrendo a remédios e tratamentos médicos ou dando-se a divertimentos, esportes e recreios sadios, o varão, pela procura das «casas de tolerância», se entrega a gastos apaixonados — o que não pode deixar de redundar em miséria material.

Tais são os elementos que levam a condenar a prostituição. Indagamos agora quais as respectivas causas...
Os autores costumam apontar os seguintes fatores de prostituição:

1) Causas econômico-sociais.

Tem-se verificado que a prostituição se alastra quando as populações crescem mais rapidamente do que as oportunidades de emprego ou de ganha-pão. Sabe-se outrossim que é das classes pobres que procede o maior contingente de prostitutas e que se entregam ao vício mais fàcilmente as operárias não qualificadas do que as qualificadas.

Observa-se igualmente que a prostituição é estimulada pelos grandes desequilíbrios sociais, como são as guerras, com as suas bruscas transformações econômicas (inflação, penúria de viveres e habitações... e sociais (deslocamento de populações), as rápidas mudanças das estruturas e dos valores tradicionais (como elas se deram no Japão, por exemplo, apôs a guerra de 1939- 45.

Grande número de prostitutas provém de famílias destroçadas pelos flagelos públicos; provém principalmente dos lares onde faltou o pai e onde a instrução se tornou muito precária ou mesmo nula.

Muitas donzelas que deixam o seu torrão e a vida rural para ir ao encalço de emprego nas grandes cidades, se veem vítimas da miséria e, na impossibilidade de sobreviver honestamente, passam a ganhar o pão pela prática do vicio. Da mesma forma, numerosos jovens do campo, passando a viver nas cidades, facilmente se deixam arrastar pelo caminho da devassidão.

2) Causas psicológicas.

Inegavelmente, em bom número de casos trata-se de mulheres oligofrênicas. As neuroses e o alcoolismo também desempenham papel importante no desencadeamento do vício.

Além das causas imediatas assim indicadas, deve-se mencionar um motivo ainda mais profundo, que exerce sua influência em quase todos os casos desastrosos: é a diluição da consciência moral em nossos tempos, a desenfreada procura do gozo, a mentalidade «existencialista», leviana, de um mundo que perdeu o senso religioso.
Faz-se mister então procurar:

3. Quais os remédios oportunos ?

Qualquer tentativa de regulamentar oficialmente a prostituição, está longe de diminuir ou frear os males decorrentes desta prática; ao contrário, só contribui para agravar as situações.

Em consequência, a IV Assembleia Geral das Nações Unidas afirmou a necessidade de se abolir em todas as nações qualquer medida administrativa que tenda a legalizar a prostituição ou facilitar a vida das mulheres que se entregam ao vício.

Já a França, por lei de 13 de abril de 1946, aboliu oficialmente a prostituição. A Itália o fez em 1958 por decreto do Parlamento, em que tomou partes muito ativas a senadora Lina Merlin, porta-voz dos direitos e da dignidade da mulher. Até mesmo o governo comunista de Xangai (China), adotando medidas enérgicas e desenvolvendo intensa campanha, resolveu extinguir a prostituição naquela cidade portuária, que era o primeiro teatro de tal vício no mundo inteiro; hoje em dia o número- de prostitutas em Xangai é extremamente reduzido.

Deve-se acrescentar que a prostituição está oficialmente abolida em vários países dos cinco continentes mundiais.

A fim de opor dique eficaz ao mal, os pensadores apregoam as seguintes medidas:
a)     procurem os governantes e os cidadãos de responsabilidade elevar o nível de vida das classes mais pobres, principalmente dos que, vivendo nos campos, experimentam penúria e se deixam seduzir pelas «vantagens» da vida nas cidades. Faz-se mister, em particular, prover a habitações dignas de uma vida familiar a fim de que a família permaneça unida, sem se desintegrar;
b)     dê-se eficaz assistência à infância desamparada a fim de que os pequeninos não sejam expostos a aprender e desde cedo praticar a vida viciada ;
c)      levante-se o nível cultural do povo em geral, mediante luta contra o analfabetismo, fundação de escolas, filmes educativos, etc.;
d)     procure-se proporcionar aos trabalhadores centros recreativos e esportivos adequados, a fim de que, após o trabalho, possam gozar de restauração física e psíquica moralmente sadia, desviando-se assim dos focos de perversão;
e)     dê-se atenção ao problema do alcoolismo... Preconizam-se restrições ao comércio de bebidas embriagantes, o fechamento de tabernas e cantinas após certa hora da noite e em determinados dias do ano...;
f)       nos casos mais agudos, a fim de recuperar as prostitutas ou as jovens propensas à prostituição, faz-se mister solicitar a cooperação de pessoas especializadas em psiquiatria, psicologia, medicina, pedagogia,... se possível, em casas devidamente instaladas para esse fim. As Religiosas do Bom Pastor se têm tornado beneméritas nessa tática.

Contudo nenhuma de tais medidas, será realmente eficaz, se não se promover ao mesmo tempo o despertar da consciência moral que deve inspirar e sustentar o comportamento humano. Qualquer lei ou disposição administrativa será algo de artificial e estéril, se dentro dos cidadãos não se suscitar a aspiração a uma vida menos devassada, se não se excitarem o zelo do bem, o amor à honra e à virtude De modo especial, será preciso fazer que a mulher conceba sèriamente a consciência da sua nobreza e da sua grandiosa missão de esposa e mãe. Sem esta renovação interior, as leis, por si apenas, de pouco ou nada servirão. Ora tal renovação de consciência só pode ser obtida pela Religião; seria utopia querer levantar a moralidade, fazendo-se abstração de Deus («moral leiga» ou neutra é impossível).

Daí se vê o papel importante que toca aos genuínos cristãos perante o problema da prostituição. Cabe-lhes levar o Cristo a tantas almas que só se entregam ao vicio, porque nunca tiveram conhecimento exato da mensagem do Senhor. São vitimas que muitas vezes se sentem mal na sua vida debochada, mas não sabem absolutamente o que fazer para se libertar dos grilhões da sua escravidão. Multiplique-se o número dos apóstolos que se dedicam à recuperação das prostitutas.


À guisa de ilustração, segue-se aqui o teor de uma reportagem efetuada por jornalista colombiano em um centro de prostituição de Bogotá (as declarações abaixo corroborarão quanto acaba de ser dito em linguagem mais teórica):

«Consegui entrar em uma 'casa' de certa rua do bairro 'delas', após muitas recusas da parte das respectivas moradoras. Eu as queria entrevistar; elas, porém, não o aceitavam.

'Venho propor-te algumas perguntas. Não publicarei nem teu nome nem a rua. Apenas desejo fazer algo para que a sociedade vos compreenda'.
Uma delas respondeu: — 'Isso não me interessa. Estou trabalhando'.
Outra: 'Pertences ao Serviço de Saúde Pública, não é verdade?'
Uma terceira: 'Essa solicitação não me agrada. Trata-se de um 'negócio' como outro qualquer; negócio, porém, que não nos convém'.
Por fim, ouviu-se alguém dizer: 'Abre-lhe a porta, Dóris'.
Entrei.
Carmenza era uma jovem de vinte e sete anos de idade aproximadamente, tez morena, rosto sério, perpassado por certa doçura, olhar entristecido... Logo que me apresentei e lhe manifestei meu interesse, ela aquiesceu com surpreendente tranquilidade, como se pudera ler em meu coração a verdadeira e sincera intenção de quem escreve estas linhas. Tal atitude, à primeira vista, significava, para mim, que se tratava de uma mulher de fundo bom, ... de uma boa pessoa imersa pelos golpes da vida dentro dessa monstruosidade que é o 'negócio' do 'amor vendido'. Sentamo-nos na saleta de visitas daquela pobre casa, pobre também por sua falta de limpeza e pintura, e formulei a primeira das muitas perguntas que havia de lhe dirigir:

   'Queres deixar esse gênero de vida?
   Sim; sem demora. Eu o tenho pedido a Deus, mas não me tem ouvido.'

Assim falou tranquilamente, creio que sem o mínimo sentimento de desrespeito para com o Criador. Lancei-lhe um olhar detido, e ela continuou:
   'Há dez anos, quando eu tinha apenas dezessete anos, casei-me. Depois de certo período, outra mulher se intrometeu na vida de meu marido. Ele então me abandonou, sem se interessar, na mínima parcela que fosse, pelas minhas condições financeiras e pelas dos dois filhos que tínhamos, os quais hoje já atingem os oito e dez anos de idade. Quando nasceu o segundo, separamo-nos definitivamente. Fui morar' com minha família'.

Estava assim esboçado o drama futuro. Pois quase todas as mulheres têm seu drama. Voltemos, porém, à nossa entrevista.

   'Naquelas circunstâncias novas, como começaste o teu atual gênero de vida?
   Uma amiga me disse que aqui se ganhava muito dinheiro. Eu precisava disto para meus filhos. Nunca tivera relações com outro homem que não meu. marido mesmo. Eu nutria um conceito muito elevado do lar e do matrimônio. Mas... Você já compreende... Já há bastante tempo que vivo aqui'.
Continuei a indagar: 'Quantas mulheres 'trabalham' aqui?'
   Além de mim, há outras quatro.
   Dás-te bem com elas?
   Bem. Mas nem sempre aprovo a sua conduta. Dizem palavras desonestas e vulgares. Eu não faço o mal a ninguém. Você já vê o que sou; foi a vida que me trouxe até aqui. Ouvi dizer que em breve se multiplicarão as empresas nas quais as mulheres poderão trabalhar. Se eu conseguisse emprego, sairia daqui imediatamente. Esta situação não me agrada'.
Perguntei-lhe de novo: — 'Ganhas muito dinheiro?
   Não. O 'comércio' não vai muito bem.
   Carmenza", que estudos fizeste?
   Cursei até o quarto ano da escola primária.
   Gostas de ler?
   Outrora gostava um pouco. Costumava ler os jornais e o Novo Testamento'.
Indiretamente esboçava-se assim o problema religioso. Por isto perguntei-lhe:
   'Já praticaste a religião ?
   Fiz a Primeira Comunhão. Antes de me casar, confessava-me com frequência. Quase não tinha pecados.
   Voltarias a confessar-te?
    Agora tenho muitos pecados.
—É assim que pensas?
   Na verdade, tenho um só pecado grave, muito grave: o de ter entrado aqui. Contudo eu o fiz em vista de meus filhos. Quando eu sair daqui, acabar-se-ão os meus pecados'.

Prometi mandar-lhe alguns livros religiosos, promessa que cumpri pessoalmente poucos dias depois da entrevista.
Antes de deixar aquela casa em que tínhamos falado de Deus, vi aparecer um semblante de criança. Indagava a respeito de alguém. Carmenza respondeu-lhe, e o menino se foi. Comentei então sob forma de pergunta : — 'Esse menino estaria a par do que se faz aqui? — Sim, como não haveria de saber tudo? É filho da mulher...'
Este tópico não precisa de comentário.

Antes de ir embora, dei-lhe (a Carmenza) um brinquedinho que eu trazia comigo e que ela aceitou como lembrança. Nós nos entreolhamos detidamente. Éramos, e somos, dois filhos de Deus que têm percorrido e ainda percorrem caminhos diversos. A respeito dela, dirão todos que é pecadora. Quanto a mim; sou um pai de família, de família de classe média. Contudo naquele momento alguma coisa nos aproximava, muita coisa nos aproximava um do outro. Não em vão nossas almas, todas as almas, foram criadas pelo mesmo Ser Supremo e dotadas da mesma finalidade: conhecer, amar e servir a Deus».
(Traduzido do periódico colombiano «El Voto Nacional», maio de 1962 n' 779, pág. 22s

LIBERALISMO e IGREJA

LIBERALISMO e IGREJA

FILOSOFIA E RELIGIÃO
TIAGO (Rio de Janeiro): «Que se entende por 'liberalismo'? Haverá algum mal em valorizar a liberdade humana?»

Conforme certos filólogos, a palavra «Liberalismo» vem do adjetivo espanhol «liberal», que na Europa do século' passado se difundiu em oposição ao adjetivo «servil» durante os movimentos políticos subsequentes ao governo de Napoleão Bonaparte. O liberalismo veio então a ser uma corrente de pensamento que afirma o valor da liberdade humana de modo tal que a cada cidadão toca o direito de conceber a Verdade, o Bem e a religião segundo o seu próprio alvitre, independentemente de qualquer tutela ou autoridade.

Nas páginas que se seguem, considerar-se-ão sumàriamente o histórico do Liberalismo, suas principais proposições, assim como a atitude da Igreja e da sã razão frente ao mesmo.

1. Histórico do liberalismo

Foi no setor da sociologia e da política que o Liberalismo surgiu. Deve-se, com efeito, a uma reação dos povos contra os sistemas de governo monárquicos absolutistas que tiveram voga na Europa dos séculos XVII e XVIII (o poder executivo, representado pelo rei, quase absorvia os poderes legislativo e judiciário, gozando de faculdades praticamente ilimitadas).

O berço da reação foi a França, onde a Revolução de 1789 (preparada pela filosofia racionalista e naturalista dos enciclopedistas Voltaire, Diderot, d’AIembert) desencadeou o ideal da «emancipação» dos cidadãos e do povo em todos os setores. Esse ideal encontrou em breve um dos seus maiores representantes na pessoa do sacerdote Félicité Robert de Lamennais. Imbuído de amor à causa cristã, esse varão concebeu a ideia de que a S. Igreja muito se beneficiaria se sacudisse os encargos decorrentes da sua união com o Estado; a partir de 1829, começou,, pois, a propugnar uma só tese: liberdade ... liberdade em tudo e para todos; o governo civil procuraria promover o bem comum sem levar em conta os direitos da Igreja, criando um bem-estar natural, emancipado do sobrenatural; a S. Igreja, por sua vez, dispensaria a colaboração das autoridades civis, colaboração que em muitos casos equivalia a sufocação; a Igreja, dizia Lamennais, se desenvolveria melhor, pois Ela possui o poder da Verdade e do Amor, o poder mesmo de Deus. Lamennais comparava o sistema antigo à tutela exercida pelos genitores sobre os filhos, tutela que deve cessar quando estes chegam à maior idade; assim o povo teria estado sob o patrocínio da Igreja e do Governo unidos até o séc. XVIU. Doravante, porém, tendo chegado à plenitude dos tempos, o povo se devia libertar de qualquer tutela profana ou religiosa, estabelecendo uma ordem de coisas neutra em matéria de filosofia e religião; o Estado e a Igreja se separariam, reconhecendo que sua união fôra mera preparação evangélica, a qual já se achava ultrapassada. O novo regime era chamado «democracia» (como se vê, este termo, em si muito belo, foi então forjado para designar uma ordem civil tida como leiga e indiferente, mas, em última análise, naturalista, raciona- lista e anticristã).

Eis como Lamennais se exprimia :
«O Estado deve considerar-se como colocado fora de todas as comunhões religiosas, sem autoridade sobre alguma delas, mas também sem outra obrigação para com elas que não a de lhes assegurar a liberdade. Isto supõe que o Estado, destituído de Religião ou, se quisermos,, ateu, professe a liberdade de cultos e a de consciência e que a Igreja aceite pràticamente estas duas coisas» (L'Avenir, t. I pág. 29s, artigo «De la Séparation de 1'Église et de l'État»).

O ardoroso sacerdote reuniu em torno de si um grupo de jovens inteligentes e generosos, tais como Lacordaire, Montalembert, Gerbet, Rohrbacher, que constituíram a sociedade dita «Agence Générale pour la Défense de la Liberté religieuse». O movimento fundou o jornal «L'Avenir», com o lema «Dieu et Liberté», mas de duração muito efêmera (de 16/X/1830 a 15/XI/1831).

Compreende-se que as ideias de Lamennais, ousadas como eram, tenham provocado receios e oposição, da parte tanto de bispos como de simples fiéis. Diante da situação, o Papa Gregório XVI em 1832 publicou a encíclica «Mirari vos», condenando as ideias de Lamennais (ideias que naquela época acarretavam perigos e males que hoje já não se verificariam). Quase todos os discípulos do mencionado sacerdote inclinaram-se diante da sentença da Santa Sé, ficando Lamennais a sós na sua residência de Chênaie, donde continuou a disseminar ideias cada vez mais liberais.

Embora estivesse dissolvido, o grupo de discípulos de Lamennais não abandonou o ideal de conciliar com os princípios do Cristianismo a sede de emancipação dos homens do século passado. Foi o que suscitou novas iniciativas e prolongadas discussões nos decênios subsequentes. Em 1848 o Pe. Lacordaire fundou o jornal «Ère nouvelle», inspirado por liberalismo assaz acentuado e arauto de reivindicações sociais inovadoras; cora ele se achavam o Pe. Maret e o leigo Frederico Ozanam. Na oposição encontravam-se Louis Veuillot e Melchior Dulac, com o seu jornal. «L'UnÍvers».

A situação se tornou cada vez mais confusa ha Franca, onde se originaram dois partidos bem característicos: um, liberal, ao qual aderiram outrossim Montalembert, De Falloux, De Broglie, Augustin Cochin, Mons. Dupanloup, bispo de Orleães; e o antiliberal, que contou com o apoio de Mons.- Fie, bispo de Poitiers. O estado de coisas era tão complexo que até os mais fervorosos católicos encontravam dificuldade para distinguir com clareza o que havia de oportuno e o que havia de errôneo nas ideias então propaladas.
Tais circunstâncias exigiam novo pronunciamento da Santa Sé. Este, de fato, se deu aos 8 de dezembro de 1864, quando o S. Padre Pio IX publicou a encíclica «Quanta cura» acompanhada do Sílabo (ou Sumário de erros do pensamento da época) ; nesses documentos o Pontífice denunciava tudo que havia de condenável nas teses dos católicos liberais.

Os anos seguintes foram anos de controvérsias. Menos de um mês após a publicação da encíclica, Mons. Dupanloup, notável por seus talentos e seu prestígio, divulgou um opúsculo intitulado «La Convention du 15 Septembre et TEncyclique du 8 décembre 1864», em que ainda procurava tornar simpática e aceitável a posição do Liberalismo. Em vista disto, distinguia entre doutrina e prática: no tocante à doutrina, asseverava, Pio IX nada condenara além do que já havia sido condenado em documentos anteriores; positivamente, apenas reiterara o pensamento da Igreja com relação à família, à sociedade e à política. No tocante à prática, porém, Mons. Dupanloup julgava que Pio IX deixara margem à conciliação com a vida moderna; seria possível, sim, abrir mão de algumas exigências práticas da verdade ou da doutrina da Igreja, caso o cumprimento de tais exigências aparecesse como algo de muito difícil ou impossível na sociedade do séc. XIX.

Esta distinção entre doutrina e aplicação prática é, em linguagem de escola, designada pela fórmula “tese-hipótese” (a hipótese leva em conta os casos concretos ou a vida cotidiana, permitindo abrandamento de conclusões decorrentes da tese ou doutrina).

A situação política da Itália favorecia as discussões: os patriotas tentavam unificar a península, abolindo o poder temporal do Papado; à sua frente, estava o Conde de Cavour, que pretendia apaziguar os ânimos, apregoando a fórmula de Montalembert: «A Igreja livre no Estado livre! (L'Église libre dans l'État libre!)»; o que queria dizer que nada haveria a temer para a Igreja caso viesse a perder o território do Vaticano, pois o Estado italiano leigo ou neutro (liberal) não entravaria as liberdades religiosas.

Sobreveio a figura de Leão XIII. Este Pontífice, pacificador como era, quis esclarecer melhor a posição da Igreja na controvérsia, publicando a 1 de novembro de 1885 e a 20 de junho de 1888 as encíclicas «Immortale Dei» e «Libertas», respectivamente. Tais documentos reafirmavam em primeiro lugar a doutrina das encíclicas «Mirari vos», «Quanta cura» e do Sílabo: asseveravam, sim, que todas as formas de governo são compatíveis com a doutrina católica, mas que a nenhum governo é lícito atribuir ao erro os mesmos direitos que à verdade ou colocar os diversos cultos no mesmo plano legal que a verdadeira Religião.

«É necessário que a sociedade civil, como sociedade civil, reconheça Deus como seu princípio e seu fim ... que ela respeite e honre o poder e a soberania de Deus. A justiça e a razão proíbem que o Estado professe o ateísmo ou — o que equivaleria ao ateísmo — que ele mostre as mesmas disposições para com cada uma das diversas religiões... e indistintamente conceda a todas os mesmos direitos. Já que a profissão pública de uma só Religião é dever do Estado, faz-se mister que o Estado professe aquela Religião que é a única verdadeira, Religião que não é difícil reconhecer, principalmente nos países católicos, pois as características da verdade brilham nela por meio de sinais que a distinguem entre todas. Essa Religião, os chefes de governo tratem de a conservar, de a proteger, se querem prover, de maneira prudente e útil, como estão obrigados, ao bem comum dos cidadãos» (Leão XIII, enc. «Libertas»).

Esta tese pode, à primeira vista, parecer rígida demais e, por conseguinte, utópica. Leão XIII tinha consciência de que seria praticamente inexequível nas circunstâncias da vida moderna. Por isto, não hesitou em explicar com precisão como na prática a doutrina (tese) poderia ser abrandada; sua posição resume-se nos três seguintes itens da enc. «Immortale Dei»:

«Ninguém tem motivo para acusar a Igreja de rejeitar concessões e acomodações razoáveis ou de ser inimiga de sadia e legítima liberdade. — Com efeito; se a Igreja julga que não é licito colocar os diversos cultos no mesmo pé legal que a verdadeira Religião, Ela nem por isto condena os chefes de governo que, visando alcançar determinado bem ou impedir certo mal, toleram na prática que esses diversos cultos tenham cada qual seu lugar no Estado. — É, aliás, costume da Igreja cuidar com todo o zelo, para que ninguém seja constrangido a abraçar a fé católica contra a sua vontade, pois, como observa S. Agostinho, a fé só pode existir onde haja espontaneidade» (Denzinger, Enchiridion 1873-1875).

A fim de ilustrar melhor o pensamento do Pontífice, transcrevemos mais as seguintes passagens da encíclica «Libertas»
“Em sua consideração materna, a Igreja leva em conta o peso acabrunhador da fraqueza humana: Ela não ignora a onda (libertina) que, em nossa época, arrasta os espíritos e as coisas. Por isto, embora só reconheça direitos ao que é verídico e honesto, Ela não se opõe à tolerância de que os poderes públicos dão provas frente a certas instituições contrárias à verdade e à justiça, tendo em vista evitar maiores males ou obter e conservar maiores bens.
Deus mesmo, em sua Providência, embora infinitamente bom e todo-poderoso, permite, não obstante, a existência de certos males no mundo, ora para não impedir bens maiores, ora para evitar mais vultuosos males. No regime das nações, convém que os governantes imitem Aquele que governa o mundo. Mais ainda: não podendo impedir todos os males particulares, a autoridade dos homens está obrigada a permitir e deixar impunes muitas coisas que, a justo titulo, cairão sob o juízo da Providência Divina. Observe-se, porém, o seguinte: se, em vista do bem comum, as leis dos homens podem e mesmo devem tolerar o mal, nunca o podem ou devem aprovar e desejar em si mesmo. Com efeito, o mal é a privação do bem; por conseguinte, ele se opõe ao bem comum, que o legislador está obrigado a desejar e defender do melhor modo possível. Neste ponto também as leis humanas devem procurar imitar a Deus...
Uma coisa ficará sempre de pé, a saber: a liberdade concedida indiferentemente a todos e em favor de todos não é, como já muitas vezes dissemos, desejável em si mesma, pois repugna à razão que o erro e a verdade gozem dos mesmos direitos; no que se refere à tolerância, é estranho ver até que ponto se afastam da equidade e da prudência da Igreja aqueles que professam o Liberalismo”.

Após tais declarações da Santa Sé, foram-se apaziguando os ânimos; o Liberalismo como tal deixou aos poucos de ser objeto de discussão. As controvérsias, porém, imprimiram suas marcas na mentalidade dos povos em geral até o dia de hoje. Pode-se dizer que numerosas correntes de filosofia, sociologia, política, assim como vários movimentos religiosos de nossos dias são, em última análise, expressões concretas da mentalidade liberal que tanto agitou os pensadores do século passado.

Vejamos, pois, mais precisamente como se caracteriza essa mentalidade.


2. Em que consiste o liberalismo?

Como se depreende de quanto foi dito atrás, o Liberalismo constitui uma tendência ou uma atmosfera muito mais do que um sistema ou uma escola de pensamento.

Essa tendência se distingue primariamente pela intenção de desligar a liberdade humana de qualquer lei ou autoridade que não seja puramente humana ou até... que não seja a do próprio sujeito. Atribui, pois, à razão a capacidade de discutir todos os valores, remover o que ela julgar inaceitável e erguer o que ela considerar oportuno. Em particular, o Liberalismo não reconhece autoridade religiosa sobrenatural, como a afirma o catolicismo :... autoridade que mereça acato e respeito independentemente dos valores humanos (virtude e sabedoria) de seus representantes.

Aliás, esta premissa é essencial para que possa existir Liberalismo: tudo é humano, e meramente humano. Por isto, tudo é relativo, tudo é imperfeito. Nada, por conseguinte, nem mesmo a Religião, merece a adesão incondicional do homem. Daí se compreende que o Liberalismo acarrete indiferentismo, ora mais, ora menos acentuado; implantando-se numa sociedade, cedo ou tarde solapa as energias coletivas e o heroísmo das atitudes.

Tal mentalidade toma facetas bem definidas quando aplicada às expressões da cultura. Eis um rápido catálogo dessas facetas:

1)     Liberalismo filosófico. É a tendência a rejeitar no campo filosófico (ou na maneira geral de encarar o mundo e a vida) qualquer tutela que não seja a própria razão humana.

Na Idade Média, os estudiosos talvez tenham abusado da autoridade do filósofo grego Aristóteles; Descartes (+1650) iniciou a reação contra essa docilidade, reação que aos poucos foi tomando proporções exageradas. A razão humana, em consequência, negou qualquer limite no exercício da reflexão, pretendendo julgar tudo, até mesmo as verdades religiosas. A possibilidade de dogmas de origem sobrenatural, não derivados da razão, foi, de antemão, negada: o homem bastaria a si mesmo (autossuficiência do pensamento humano). As correntes filosóficas contemporâneas não cristãs, por mais contrárias que sejam entre si, supõem todas tal ponto de partida: assim o criticismo, o idealismo, o positivismo, etc.

Bons críticos modernos observam que nessa posição filosófica está latente certa contradição: o Liberalismo, que rejeita o dogma, de antemão admite um dogma — o dogma de que não pode haver autoridade ou tutela que transcenda a razão humana. Sem provas e gratuitamente, o pensador liberal se vincula a este pressuposto, cerceando a sua liberdade dentro do seu imanentismo ou da sua autossuficiência.

2)     Liberalismo religioso. Lutero proclamou o livre exame da Bíblia, ou seja, a recusa de qualquer autoridade visível que orientasse a leitura das Escrituras Sagradas; cada crente deveria perceber dentro de si, pelo testemunho meramente interno do Espírito Santo, o sentido da Palavra de Deus. Com isto Lutero deu início a uma nova mentalidade dentro do setor religioso — mentalidade subjetivista e individualista. Eis, porém, que, quando a fé no testemunho interno se atenuou (como no protestantismo do séc. XVIII), cada indivíduo ficou com a liberdade de julgar os valores da Religião sem controle superior à sua própria razão; dai dizer-se que tanto faz abraçar esta como aquela religião ou mesmo recusar qualquer religião. Em última análise, todas as Religiões seriam boas; dir-se-ia que é o homem quem as faz, quem as julga, quem as condena, em vez de ser condenado pela Religião.

Tais ideias repercutiram em certas correntes bíblicas dos séc. XVIII/XIX, favorecendo exageros na crítica dos livros sagrados. Em consequência, notáveis autores dedicados ao estudo das Escrituras chegaram a negar a Divindade de Cristo. Tal estado de coisas provocou entre os anglicanos o benfazejo «Movimento de Oxford», encabeçado por Newman, o qual denunciou e impugnou o liberalismo religioso, primeiramente como anglicano, depois como católico.

Pio IX, no Silabo, condenou a proposição no 4, conforme a qual a razão seria a soberana norma para se julgar qualquer tipo de verdade (cf. Denzinger, 1704).

Aplicado ao setor das relações da Igreja com o Estado, o Liberalismo religioso propugna um Estado leigo (que praticamente é Estado ateu), dissimulado sob o nome de Estado «tolerante»: Religião não seria valor necessário a um programa de bom governo; em matéria de Religião, não haveria propriamente nem verdade nem erro, nada enfim que merecesse o empenho do Estado.

A Igreja, na impossibilidade de conseguir melhor solução, aceita esse agnosticismo, contanto que não degenere em perseguição religiosa.

3) Liberalismo político. Caracteriza-se, no seu âmago, pelas ideias que acabam de ser expostas no tocante à Filosofia e à Religião. A política é uma das aplicações da Filosofia e da atitude religiosa do cidadão.

4) Liberalismo econômico. No setor econômico, o Liberalismo ensina que a livre concorrência é lei providencial, a qual estimula a produção dos bens e a prosperidade dos povos; o interesse pessoal dos cidadãos, isento de qualquer intervenção do Estado, seria o grande propulsor das atividades econômicas.

Essas ideias foram apregoadas de maneira sistemática na Escola de Manchester, orientada por Adam Smith (+1790). «Deixar fazer, deixar passar», tal era o lema desse tipo de Liberalismo; nenhuma autoridade teria o direito de exercer controle sobre as iniciativas dos indivíduos, que destarte facilmente cediam ao egoísmo e à ganância, estabelecendo a opressão dos pobres por parte dos ricos, reduzindo o trabalho à categoria de mercadoria sujeita às leis da oferta e da procura; tais males foram agravados pelo fato de que os economistas liberais do séc. XVIII professavam a total separação entre economia, de um lado, e moral (consciência), do outro lado. Foi o liberalismo econômico que provocou a concentração de grandes capitais em mãos de poucos proprietários, com detrimento para a massa da população entregue à miséria (donde o chamado «capitalismo»).

5) Liberalismo artístico. Propala a separação entre às regras da arte e as normas da consciência ou da moral. Ao artista seria lícito produzir toda e qualquer obra de arte, sem levar em conta os ditames da ética. Cf. «P. R.» 25/1960, qu. 5, onde se encontram a explanação e a refutação dessa atitude liberal.

Em conclusão: o Liberalismo resumiria todas as suas expressões no seguinte princípio: Todo homem responsável por seus atos tem o direito de fazer o que lhe agrade, «certo ou errado», desde que os atos de tal indivíduo não prejudiquem a sociedade.

As categorias de «certo» e «errado», conforme esta apreciação, são muito variáveis, de modo que ninguém pode pretender possuir a certeza ou a verdade.

Que dizer de tais ideias?


3. Uma reflexão

1. Como vimos, o princípio básico do Liberalismo ensina que a liberdade é um bem absoluto, acima do qual não há padrão; consequentemente, ao homem é lícito, com a sua liberdade, empreender o que queira.

Ora não é difícil verificar as falhas deste princípio. Em verdade, o homem nada tem de absoluto, mas é um ser relativo, que só se consuma voltando ao seu Autor , o Bem Supremo ou Deus. A liberdade, portanto, não é o Supremo Bem ou o Fim do homem, mas é mero meio de que o homem dispõe para atingir com dignidade o seu Fim Supremo, Deus.

Realizar o bem é o fim do homem. Querer realizá-lo, e querer realizá-lo de maneira consciente e nobre, eis o que a liberdade presta de grandioso ao homem.

Por conseguinte, o cidadão não vive para gozar simplesmente da sua liberdade, mas para utilizá-la, para pô-la ao serviço do seu ideal supremo, que é a consecução do Sumo Bem ou Deus.

Donde se vê que o homem recebeu, sim, a liberdade de escolher entre o bem e o mal, entre a verdade e o erro, mas não recebeu o direito de escolher o mal e o erro. Não; a própria natureza humana exige que o homem, para ser o que deve ser, aplique a sua liberdade a escolher a verdade e o bem, rejeitando; o erro e o mal.

O genuíno uso da liberdade, portanto, não implica que. o homem tenha o direito de escolher indiferentemente entre o bem e o mal, mas apenas... que ele tem o direito de escolher o bem com dignidade superior à de uma máquina ou de um autômato. Donde se vê que a ninguém é lícito, em nome da liberdade professar e apregoar o que lhe passe pela cabeça. Quem queira fazer isto, encaminha-se para a sua ruína física e moral; ora a natureza a ninguém deu o direito de se destruir. — É preciso, pois, que haja autoridade e guia em todo e qualquer setor em que o indivíduo se queira lançar.

São estas ideias que nos levam a rejeitar a mentalidade do Liberalismo como algo de falho ou algo de nocivo à própria dignidade humana.

2. A fim de favorecer a reflexão sobre o assunto, transcrevemos aqui algumas passagens de Fulton Sheen, que, em estilo característico, enunciam as mesmas ideias:

«A liberdade não é o direito de fazer o que me pareça...; ao contrário,. .. é o direito de fazer o que devo...
Essa palavrinha «dever» significa que o homem é livre. O fogo é necessàriamente quente, o gelo é necessariamente frio, mas o homem deve ser bom.

A liberdade não é o poder de fazer qualquer coisa que se queira... Certamente você pode fazer qualquer coisa que lhe agrade ou que queira. Pode roubar do seu vizinho, pode bater na sua mulher, pode encher colchões com giletes usadas, e também matar a tiros de metralhadora as galinhas do vizinho, mas você não deve fazer nada disso, parque, se fizesse algo tal, se desfiguraria ou degradaria, deixaria de ser o que um homem deve ser.
A liberdade é, pois, mais um poder moral do que um poder físico, é um dever e não um poder.»

Mais adiante continua o autor, falando de «espécies de liberdade» a fim de designar «verdadeira e falsa liberdade» :

«Qual é a mais elevada espécie de liberdade? Fazer o que devo, isto é, obedecer à minha consciência e salvar a minha alma, ou fazer tudo o que eu queira, seja bom, seja mau?

Eis dois aspectos da liberdade, pois alguém se faz santo pela mesma vontade pela qual se pode tornar um demônio.
Este é o problema : Qual é a mais alta forma de liberdade ?

Decerto, fazer o que devemos é mais alta forma de liberdade do que fazer o que queremos, porque a primeira termina no perfeito desenvolvimento da nossa personalidade, ao passo que a última termina em sua escravização.

Por exemplo, o homem deve ser sóbrio, e não se entregar demais ao hábito da bebida. Suponhamos, porém, que diga : 'Sou livre, portanto, nada de proibições nem... de restrições puritanas; por isto beberei quanto quiser'. Depois de algum tempo, tal homem fica escravizado à bebida; em lugar de fazer o que lhe agrada, bebe não por prazer, mas para evitar o desprazer de não beber. Tendo agido mal, sua vontade permanece ainda livre para escolher o que é bem,, mas ele não é mais livre para fazê-lo. Todas as forcas de resistência foram vencidas e sua liberdade acaba em escravidão. O erro que cometeu, é o erro que o mundo moderno está cometendo: pensar que liberdade significa independência da lei, e que infringir as leis de Deus é uma forma de afirmação de personalidade. O que devemos meter em nossas cabeças, como cidadãos, como pais de família e como educadores, é que liberdade não significa ilegalidade. Pelo contrário, a liberdade é condicionada pela obediência à lei. Liberdade fora da lei não existe, só existe liberdade dentro da lei... Por exemplo, um aviador só tem liberdade de voar se submeter-se à lei da gravidade, isto é, deve agir dentro da lei e não fora dela. Tente agora dar uma prova de afirmação da personalidade, e atire-se do Empire State Building e verá que num minuto terá perdido toda liberdade — até a de viver... Esqueça a finalidade de uma navalha e use-a para abrir latas de tomates, e estragará a navalha porque esqueceu sua finalidade...

Assim se dá com a lei moral; somos verdadeiramente livres quando obedecemos à finalidade ou à lei para a qual fomos criados, finalidade que é o desdobramento e o desenvolvimento de nossa personalidade através de nossa eterna felicidade com Deus. Temos liberdade de ignorar a lei moral, de beber, de roubar, de ser adúlteros, de sacudir os punhos com ódio, assim como temos liberdade de ignorar a lei da gravidade, mas cada vez que a ignoramos, ou diminuímos ou destruímos a nossa liberdade. Alcança-se a liberdade real, agindo não fora da lei, mas dentro dela.

...Deus implantou na natureza humana e em Sua Igreja as leis que nos permitem realizar a finalidade da vida e atingir os mais altos objetivos de nossa personalidade. Essas leis não são represas que detêm o progresso; são diques que impedem que as águas do egoísmo e da concupiscência invadam a terra. Se eu obedecer ou fizer o que devo, serei livre. Se desobedecer ou fizer o que quiser, estarei agindo contra os mais altos interesses de minha natureza. Cada vez que peco, sou menos homem em razão disso, tal como a máquina em cujo uso se violam as instruções do fabricante é menos máquina.

Pecar, que é o desprezo da finalidade e da lei da vida, não é prova de liberdade; é o começo da escravidão, porque, como disse Jesus Cristo, 'todo aquele que comete o pecado, é escravo do pecado* (Jo 8,34)» (O problema da Liberdade. Rio de Janeiro 1945, pág. 3742).

3. Uma vez refutado o princípio básico do Liberalismo, verifica-se consequentemente quanto são errôneas as concretizações ou aplicações do mesmo nos diversos setores da Filosofia, da Religião, da economia, etc. Por isto não nos demoraremos na consideração direta de tais aspectos. Apenas aqui lembraremos que a S. Igreja nos últimos anos, ao conceber as suas relações com o Estado e com outros credos religiosos, mais e mais propugna a tolerância ou o «caso de hipótese» de que já Leão XIII se fez arauto; cf. «P. R.» 36/1960, qu. 6.